Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Obras em Preparação

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA E ANTÔNIO BANDEIRA

Composição abstrata Nada mais indicado, no conjunto de obras de arte da Coleção Roberto Marinho, que reunir as pinturas de Maria Helena Vieira da Silva e Antônio Bandeira em um mesmo núcleo. Existe clara afinidade formal entre o trabalho dos dois artistas, em determinadas épocas específicas, e mantêm eles em suas carreiras algumas singularidades interessantes e de certo modo comuns. Vieira da Silva, portuguesa por nascimento, tem cidadania francesa e desde a década de 1930 reside em Paris; seu avô paterno foi cônsul do Brasil em Portugal e a pintora residiu em nosso país entre 1940 e 1946. Antônio Bandeira, cearense, a partir de 1946 fixou-se em Paris e viveu o mesmo clima de inquietação cultural que em seguida ao último pós-guerra produziu as diversas tendências da arte abstrata, encerrando o predomínio da França como pólo hegemônico para a criação artística.

Ambos praticaram um abstracionismo caracterizado pela referência analógica ao mundo real, acompanhando uma corrente que em 1956 o crítico Michel Ragon identificaria genericamente como paisagismo abstrato ou naturalismo abstrato. Ambos estabeleceram fortes laços em suas relações com a cultura e a intelectualidade dos países em que viveram, França e Brasil, em caráter permanente ou transitório. E associar a obra destes artistas é decerto uma maneira de homenageá-los com pertinência, no que concerne ao significado que seus trabalhos assumem perante a arte brasileira e a evolução do abstracionismo de modo geral.

Poucas tendências na arte do ocidente despertaram tantas controvérsias e polêmicas quanto a abstração. Surgindo como movimento de intensa expansão logo em seguida à II Guerra Mundial, colocou questões localizadas exatamente no centro da própria estrutura de comunicação humana, que também pela mesma época começava a ser objeto de análise sistematizada no plano intelectual e científico. Embora desde há muito a filosofia houvesse discutido com insistência fenômenos correlatos, só o estudo prático da comunicação tecnológica veio desencadear o surto de reflexões e teorias que permitiu o advento de verdadeira consciência a respeito dos sistemas que presidem a comunicação entre os indivíduos e entre estes e a sociedade, inclusive no tocante aos discursos estéticos. Deste modo, é compreensível que a eliminação dos traços de reconhecimento das imagens visuais, num campo como o das artes plásticas, que desde sua origem instituíra-se como foro privilegiado da representação figurativa, provocasse todo o tipo de desorientação.

A Europa, subordinada à inclinação da cultura francesa para a classificação racionalista, à maneira das taxionomias do oitocentos, viu-se despreparada para sequer compreender a razão estrutural do novo acontecimento artístico, que operava possíveis códigos cujo eventual sistema de significação escapava aos léxicos visuais familiares, mesmo aqueles das tendências construtivistas que vigoravam desde as primeiras décadas do século, pois que se constituíam já e também numa taxionomia das formas geométricas. E hoje, como conseqüência desta erupção simultânea de um movimento estético que rompia radicalmente com a tradição dos códigos da comunicação visual, e de estudos que poderiam elucidar o universo específico deste movimento, verificamos que grande parte da literatura crítica sobre o abstracionismo fundou-se apenas em simplificações intuitivas ou na perplexidade da incompreensão.

O ponto essencial da questão pode ser visto na relação entre o mundo real e suas possibilidades de representação, ou seja, na situação da representação visual em si mesma. Este limiar difuso entre o que existe com forma reconhecível e o que é forma "inédita" concebida pelo artista —  nada mais nada menos do que a discussão em torno da arbitrariedade dos signos não-naturais — preenche imensa parcela das classificações históricas da arte abstrata e serve ainda de base para hipóteses políticas de valor discutível. Dentre elas a que, com laivos de paranóia pretende identificar a origem do abstracionismo com os sombrios desígnios do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América durante os tempos da guerra fria. Que esta entidade, tão internacionalista quanto o Komintern, serviu-se o quanto pôde dos efeitos daquele problema teórico da estética, procurando propagar e estimular as tendências artísticas que não comportassem o comentário direto e claro das contradições sociais, é óbvio. Porém, constitui equívoco prosaico imaginar que a arte abstrata da década de 1950 possa ter sido engendrada como parte de estratégia que visasse anular, no plano da cultura visual, a influência do legado expressionista ou a "ameaça" do realismo socialista.

No que se refere às obras de Vieira da Silva e Bandeira, parece-me que elas se aproximam na aceitação espontânea do abandono das modalidades tradicionais de representação, através de processos gradativos e sem que contudo tenham, em algum momento, efetivamente pretendido a utopia da eliminação absoluta da referência ao real — real, bem entendido, enquanto conceito pertinente aos domínios da cultura. Cultivaram ambos a vontade de evitar as hierarquias da organização formal, substituindo-as por sistemas completos de valores exclusivos. O que vale dizer, mantendo a identidade pessoal daquilo que Umberto Eco designou contemporaneamente como idioletos ou, em última análise, os códigos estéticos configurados através da linguagem dos artistas em suas obras.

Procuraram, um e outro, o fracionamento do espaço, tornando-o fluido e infinito e destituindo de significação o plano na pintura, recorrendo à idéia de metáforas e metonímias visuais cujo principal objetivo talvez tenha sido a ambigüidade. E esta ambigüidade, produzida decerto pela ampla pluralidade das experiências culturais de cada um dos dois pintores, dotou seus trabalhos de um caráter universal mais ligado às suas linguagens específicas do que propriamente à tendência à qual estiveram ligados. E, nunca é demais recordar, certamente também ligada à casual singularidade da comum origem latina.

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

Desde o início da década de 1930, Maria Helena Vieira da Silva recorreu a tentativas de romper com a tradição da figuração, mas não com o sistema intrínseco de analogia visual com a realidade: "... Para muitos pintores o mundo visual não conta. Para mim conta muito, é o vocabulário". Sua primeira exposição individual em 1933, resumiu-se ao projeto de criação de um livro infantil, cuja apresentação foi assinada por Pierre Guéguen, a quem Gillo Dorfles atribui a cunhagem do termo tachisme, em 1954 (Michel Ragon a atribui a Charles Estienne). Em 1936 apresentou em Lisboa algumas pinturas associadas à abstração, que propunham formalmente a segmentação algo geometrizada de motivos figurativos, já assinalando um processo de redução ou de estilhaçamento da totalidade das formas significantes em favor de um universo imaginário. Vindo para o Brasil em 1940, em companhia do marido, o pintor Arpad Szenes, integrou-se perfeitamente a nosso ambiente cultural e foi capaz de dinamizá-lo a nível de estímulo e intercâmbio, no Rio de Janeiro sobretudo. Retornando à França em 1946, passa a ser verdadeiramente reconhecida na Europa, pois só então o governo francês adquire um trabalho de sua autoria, em 1948, e publica-se o primeiro estudo crítico sobre sua pintura, em 1949, por Pierre Descargues.

Sua obra, que esteve sempre ligada à matriz européia da abstração, quase que em oposição à violência gestual da matriz norte-americana, dificilmente se enquadra na terminologia convencional elaborada para o gênero, terminologia esta produzida mediante algo de simplificação intuitiva, conforme mencionei anteriormente. Se a principal corrente da abstração na França foi caracterizada como lírica, por George Mathieu, em 1947, é pouco provável que a pintura de Maria Helena Vieira da Silva possa ser contida nesta definição. A marca extremamente pessoal de seu trabalho, que por vezes reporta intensa similaridade com a cultura visual da artista, conforme observado por Guy Weelen e Jacques Lassaigne em 1979, institui a impossibilidade de associá-la de modo direto a conceitos estratificados. Isto fica particularmente claro em sua obra da década de 1950, que está magnificamente representada nas cinco telas que fazem parte da Coleção Roberto Marinho, reproduzidas e comentadas neste livro, datadas de 1953 (A festa da aranha) a 1957 (O pôr-do-sol). Podemos verificar inúmeras analogias com a produção em certas épocas e em certas pinturas, de artistas tão diversos quanto K. H. R. Sonderborg, De Kooning, Manessier, Bazaine, Corneille, De Stael e até mesmo o Rauschenberg de 1950-1951. Mas, sempre, a autonomia de uma obra que só encontra definição no universo da arte de sua autora, exclusivamente.

ANTÔNIO BANDEIRA

Sobre Antônio Bandeira, também há muito que dizer. De acordo com depoimentos e reflexões que deixou registadas em correspondência pessoal, as imagens visuais de sua infância e adolescência no Ceará permaneceram como fortes signos em sua memória. Da fundição em que trabalhava seu pai, na qual assistia impressionado o clima frenético das tarefas em contraponto com as cores refulgentes dos metais derretidos, sentindo o calor permanente que se materializava em explosões de fagulhas, às árvores de contornos intrincados, tudo era fixado por sua percepção de entremeio com a luminosidade tropical acentuando o colorido das imagens e moldando uma sensibilidade determinada para as relações cromáticas.

Bandeira foi de início autodidata, e apenas a partir dos vinte anos de idade integrou as exposições do Centro Cultural Cearense de Belas Artes. Em 1945 transfere-se para o Rio de Janeiro, em companhia de Inimá de Paula, e Aldemir Martins, jovens artistas que com ele formavam o chamado Grupo Cearense, trazido à capital do país pelo empresário Askanazy (em cuja galeria carioca Vieira da Silva havia realizado exposições no ano anterior). Com o fim da guerra, segue para a Europa e fixa residência em Paris, freqüentando cursos regulares de aperfeiçoamento artístico. Antes de viajar, sua obra estivera comprometida com vigoroso sentido de notação expressionista. O contato com o pintor alemão Wolfgang Schultze (Wols), que solitário e marginal desde 1945 desenvolvia na França um tipo de arte que seria precursora absoluta do abstracionismo lírico e informalista, e com Camille Bryen, que já em 1936 expusera uma tela "tachista" num salão parisiense, imporia fortíssima influência ao trabalho do artista brasileiro. Wols só pôde dedicar pouco menos de cinco anos de sua produção à pintura abstrata, falecendo em 1951 e deixando principalmente desenhos e têmperas de reduzido formato que realizava febrilmente sobre papel e cartão. Tal contingência, é curioso, se repete na obra de Bandeira, embora mais tarde coexistindo com pinturas quase sempre a óleo e de grandes dimensões. É patente a similaridade que os trabalhos dos dois artistas apresentam em determinadas épocas da atividade de cada um deles, em especial quanto ao aspecto que torna o suporte da obra não apenas um espaço de representação mas antes de tudo uma espécie de campo de ação para a pintura. Disto decorre, sem dúvida, a característica da nuclearidade das formas, que se expandem em direção aos limites externos da tela à maneira de uma explosão ou se contraem em estágios sucessivos a partir destes limites. E se sabemos que o nome de Wolfgang Schultze ocupa hoje a posição de pioneiro em qualquer dos mais completos textos relativos à história da arte abstrata posterior à II Guerra Mundial, reconhecido como antecipador do movimento e mesmo o seu ponto de partida em termos formais, torna-se impossível esquecer que Antônio Bandeira esteve muito próximo do artista alemão e participou deste processo justamente no momento em que procurava ampliar o universo da experiência que trazia da arte brasileira.

A mesma questão relativa à vinculação com o real, mencionada quando me referi a Maria Helena Vieira da Silva, encontra-se presente na obra de Bandeira. O crítico Jayme Maurício, que conviveu com o pintor e conhece bastante o contexto de seu trabalho, costuma afirmar que considera predominante em sua obra a raiz figurativa, pelo menos face aos sistemas convencionais de análise do assunto. Meu angulo de visão, contudo é diferente. Insisto em que no caso de Bandeira estamos diante de uma obra nitidamente voltada para a abstração, não obstante através de particularidades tipológicas exclusivas (o que decerto mais uma vez reforça a adequação de considerarmos, neste livro as pinturas de Vieira da Silva e Bandeira em um mesmo núcleo, pois que no caso da obra da artista portuguesa como vimos, ocorre algo muito semelhante).

Antônio Bandeira, na verdade, cultivou permanentemente a ambigüidade da referência figurativa, seja por meio das imagens visuais em si mesmas ou da evocação discursiva e literária que conferia aos títulos através dos quais as designava. A esse respeito, basta observar Cidade iluminada (1962), Il neige sur Notre Dame (1962), Como cascata escorrendo (1964) ou Soleil sur paysage vertical bleu (1965), nesta coleção. Isto, porém, não eliminou jamais em sua obra a opção de recusar os processos de representação objetiva: restrito a eles, teria sido impossível para o artista elaborar a poética visual de uma pintura que — queira ou não o nosso paroquialismo cultural — conquista por seu mérito e individualidade lugar bem definido e relevante na arte abstrata internacional da segunda metade deste século.

Sua produção encontra-se centrada na vertente européia do abstracionismo dito lírico, mas, assim como a de Vieira da Silva, não se adapta, passivamente aos padrões cristalizados pela corrente que criou uma nova e derradeira versão da Escola de Paris quando esta cidade era rapidamente deposta de sua histórica predominância como centro irradiador da arte mundial. Bandeira não assumiu qualquer oposição formal às tendências norte-americanas da abstração, cujos componentes dramáticos chocavam a mentalidade européia tanto quanto eram passíveis de admiração e interesse por parte de um brasileiro. Observando a evolução do abstracionismo de seu tempo, vivendo calorosamente a experiência de elaborar uma pintura que fosse sua e ao mesmo tempo capaz de comportar suas memórias de homem e seus desafios de artista, precisava assegurar o espaço para a satisfação de um temperamento dinâmico, curioso e eclético. Por isso aceitou influências e procurou conhecimentos que servissem a seus propósitos, sem teorizar sobre eles ou reprimir atrações que contrariassem programas estéticos.

Diversos elementos do expressionismo abstrato, e mais precisamente da action painting (ambas designações genéricas formuladas em 1949, respectivamente por Clement Greenberg e por Harold Rosenberg, como tentativa de apreender em termos de classificação as modalidades norte-americanas de abstração, muito embora sem o pretenso rigor conceitual e cartesiano das tentativas européias de definir as suas) foram introduzidos por Bandeira em sua obra. Recorreu muitas vezes, na década de 1960, ao dripping, o livre escorrimento da tinta sobre o suporte, uma típica característica da arte de Jackson Pollock (assim como Wols, um maldito e um marginal). Deste modo conferiu a seu trabalho uma motivação coreográfica, de registro cinético do movimento da criação, que não teria encontrado na pintura francesa da época. As verdadeiras redes de formas que produziu denotam em sua pintura total singularidade estética, mesmo e em especial quando no conjunto da obra do artista é possível isolar, além da forte analogia inicial relativa a Wols, múltiplas e circunstanciais referências a Pollock, Mathieu, Riopelle e, com reduzida freqüência, a Tobey e De Kooning.

Ao morrer, com quarenta e cinco anos de idade, Bandeira continuava a desenvolver um trabalho marcado pela autonomia e pela individualidade. Terá sido dos únicos pintores brasileiros, da década de 1950 em diante, a elaborar com absoluta coerência uma prática muito pessoal das poderosas tendências artísticas que surgiram em paralelo à expansão dos meios de comunicação de massa. Dedicou-se a um tipo de pintura que sempre postulou a internacionalização de sua linguagem, antecipando o fenômeno de homogeneização de conhecimentos e costumes que a sociedade contemporânea estimula, mas sua dedicação condicionou-se a profundos vínculos com sua origem e com as imagens de sua cultura. Trabalhou com disposição e persistência, mantendo intacta a percepção e a sensibilidade que lhe permitiram integrar-se, sem perda de autenticidade, aos episódios de uma das mais radicais rupturas na história da arte mundial.

Nas pinturas de Maria Helena Vieira de Silva e de Antônio Bandeira temos o excepcional exemplo de artistas que entenderam com clareza e naturalidade a imposição de individualismo que a arte traz implícita; e, através desta compreensão, puderam aplicar-se a uma corrente artística que exacerba tal imposição, sem que entretanto tenham sido compelidos à introspecção ou ao isolamento: universalizaram suas respectivas obras e conservaram os signos particulares de suas experiências pessoais. A sucessão de livros nas estantes das bibliotecas, os gradis de Lisboa ou a agitação das multidões nas estações de transporte coletivo, não são as imagens objetivas das pinturas de Vieira da Silva, assim como as árvores contorcidas, a paisagem irregular do nordeste brasileiro ou a luminosidade noturna das metrópoles modernas, não são na pintura de Bandeira reflexos diretos do real. Mas, em ambos os casos, certamente significam a extrema e genuína realidade individual da pintura que estes notáveis artistas produziram.

Novembro de 1985

 

Estudo preliminar publicado no livro SEIS DÉCADAS DE ARTE MODERNA NA COLEÇÃO ROBERTO MARINHO. Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1995, p.278-319.

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TEXTO:
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IMAGEM:
ANTÔNIO BANDEIRA Composição abstrata, 1965, coleção particular, Rio de Janeiro RJ.

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