Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Obras em Preparação

VINET: UM PAISAGISTA FRANCÊS NO BRASIL DO SÉCULO XIX

INTRODUÇÃO

Como considerar a questão do paisagismo na pintura brasileira, tentando estabelecer os fundamentos de um modelo de desenvolvimento diacrônico cuja principal característica possa ser a de evidenciar as limitações geradas pela estética do neoclassicismo nas versões disseminadas através da Missão Artística Francesa de 1816?

Em geral, determinados pontos-de-vista aplicados a este assunto são passíveis de serem acusados de demasiada simplificação, quando não refutados como mero passionalismo ideológico. Temos de aceitar como irrefutável, porém, que o sistema de representação simbólica típico da estética neoclássica configurava mais sua noção intrínseca de arte do que propriamente a opção por uma temática específica, constituído deste modo como uma linguagem não assumida enquanto tal e superlativamente operada como doutrina.

NEOCLACISSISMO, PODER E CONTESTAÇÃO

Será necessário observar que os artistas franceses de 1816 identificaram-se plenamente com a função de missionários, ainda que em tempos e escalas muito diversos. Puderam, por isso, consolidar uma imbatível organização destinada à implantação e à difusão dos conceitos estéticos aos quais se filiavam, programa urgente porque também questão liminar de sobrevivência física e espiritual em um ambiente originalmente hostil. Não cremos suficientemente demonstrada qualquer hipótese que espere definir o ensino, enquanto caminho de aprimoramento cultural e desenvolvimento social autônomo, como projeto essencial dos pintores liderados por Lebreton; e, também demonstrado de maneira insuficiente, preferimos acreditar na possibilidade de ocorrência do ensino como estratégia vital para a disseminação hegemônica de uma determinada leitura da realidade através da arte.

Estas reflexões remetem a um ângulo importantíssimo, ainda não discutido com pertinência no que concerne à Missão Francesa a ao Neoclassicismo no Brasil em geral: a problemática do poder, de sua retórica fortemente adaptável e eficaz para o contexto de uma cultura nacional em formação. Não se pode negar que a história da Academia das Belas Artes, em sua origem e evolução, terá sido sempre a crônica de uma luta violenta e constante pelo poder, dissimulada quando conveniente e explícita e desafiadora quando impossível acobertá-la. E uma situação deste tipo teria sido possível sem o amparo de uma estética fundada no autoritarismo, na rigidez e na auto-suficiência ?

Temos procurado estabelecer algo semelhante a uma infraestrutura conceitual em torno do paisagismo na arte brasileira, que nos permita algum dia realizar trabalho efetivamente abrangente a esse respeito. Foi imperativo iniciar esta tarefa pela análise da atuação do pintor alemão Johann Georg Grimm (1846-1887), seguida pelo exame da obra de seus discípulos exponenciais, Antônio Parreiras (1860-1937) e Giovanni Battista Castagneto (1851-1900), o que restringiu o período cronológico estudado às duas últimas décadas do século XIX e dispensou dedicar maior reflexão a questão tão ampla quanto a das seqüelas do neoclassicismo na Academia Imperial das Belas Artes, de resto já então agonizante com a monarquia. Agora, contudo, o prosseguimento de nosso projeto sobre o paisagismo no Brasil exige que o período a ser enfocado recue até meados do oitocentos, tornando mais próximos e intensos os complexos problemas colocados pela influência neoclássica vista através da perspectiva do poder institucional. Estudo que ora desenvolvemos em torno de Henri Nicolas Vinet (1817-1876), pintor cujo papel nos parece de enorme relevância na produção artística brasileira do século passado.

PAISAGISTA NA FRANÇA E NO BRASIL

Henri Nicolas Vinet nasceu em Paris, França, a 9 de setembro de 1817. Seus pais, Henri Nicolas Vinet e Madeleine Angelique Vinet, residiam à rue du Mont-Parnasse número 8, no 11e. arrondissement da cidade, onde possivelmente dedicavam-se ao comércio. As fontes francesas de informação bibliográficas são em geral omissas a respeito da biografia do artista, e a referência mais significativa quanto à sua origem indica sumariamente a suposição de nascimento em Paris, "...a Morainvilliers par Poissy". Ignora-se o decurso de sua existência até o início da década de 1840, cabendo portanto estabelecer se dispôs ou não de formação educacional regular. Certo é que em 1841 participava do Salon em Paris, com uma pintura, Vue de la fôret de Fontainebleau par une matinée d'octobre, permitindo assim admitir pelo menos duas possibilidades imediatas: que já possuía formação artística satisfatória para ser aceito em importante exposição coletiva, e que por volta do ano anterior já praticava um paisagismo de feição naturalista, ambientado ao ar livre numa região que motivara, como tema, também a Théodore Rousseau (1812-1867) e a Jean-Baptiste-Camille Corot (1796-1875), entre outros notáveis mestres franceses do gênero.

Em 1843 e 1845 participou novamente da exposição, com uma paisagem em cada ano apenas. Neste período terá dado curso a intensa atividade, trabalhando nas proximidades de Paris e restringindo suas excursões aos limites dos departamentos de Seine-et-Oise e Seine-et-Marne, exceto por breve estada na Normandia. Em 1848, como resultado dos esforços dos anos anteriores, apresentou ao Salon quatro paisagens, sendo que uma delas, o estudo Vue prise aux environs d'Enghien - Vallée de Montmorency, fora executada em 1843. Esta pintura, embora mutilada, está presentemente localizada no Brasil e atesta as qualidades de formulação típicas da obra do artista cerca de quinze anos antes de deixar a França. Vinet deslocou-se até as imediações de Le Havre antes de 1849, dedicando-se persistentemente aos estudos no natural. Neste ano volta a participar do Salon, com duas paisagens. Só tornaria a fazê-lo, depois, em 1867, quando do Brasil enviou um único trabalho, Bananiers aux environs de Rio de Janeiro.

FORMAÇÃO

Da vida do artista na França permanece também o enigma de sua formação artística, sobretudo quanto às possíveis relações com Corot. Fontes bibliográficas tradicionais brasileiras asseguram com insistência, de modo vago e destituído de referências formais, que teria sido aluno de Corot. Destas fontes, a mais antiga é o livro Um Século de Pintura, de Laudelino Freire (1916), e pode-se aceitar que, salvo desconhecida menção anterior e mais completa, todas as demais a ela subseqüentes limitaram-se a repetir a citação sem questioná-la.

O conjunto de informações européias referentes a Corot, vasto e minucioso, preliminarmente não faz qualquer alusão ao nome de Henri Nicolas Vinet, restando contudo aprofundar ao longo do tempo exame específico a esse respeito. Porém, os roteiros percorridos pelo célebre paisagista em França, em especial seus constantes e periódicos deslocamentos para a Normandia, apresentam certa analogia com as escassas informações até então determinadas quanto às excursões de Vinet em busca das regiões mais adequadas para a pintura ao ar livre. Não obstante a indefinição da questão documental, é fato evidente que sua obra acusa forte influência de uma modalidade de paisagismo entre naturalista e romântico bastante similar à tipologia da obra de Corot, notadamente se observarmos elementos tais como a organização da composição e o sistema de enquadramento dos trechos representados.

NO RIO DE JANEIRO

A partir de Laudelino Freire, quase que a totalidade de nossos historiadores de arte assinala como data da chegada de Vinet ao Brasil apenas o ano de 1856 (Laudelino Freire em 1916, Adalberto de Mattos em 1922, Carlos Rubens em 1941, José Maria dos Reis Júnior em 1942, Roberto Pontual em 1969 e Quirino Campofiorito em 1983), com exceção de dois que foram mais vagos apontando "...meados da década de 1850" (José Roberto Teixeira Leite em 1979 e Mário Barata em 1983). A data precisa da chegada do artista ao Rio de Janeiro foi o dia 18 de junho de 1856, uma quarta-feira, vindo do Havre na galera francesa Victoria. Em sua companhia vieram a esposa Laura e o filho Camille, conforme registrado pelo Jornal do Comércio (Movimento do Porto, 19/06/1856, p.3). Curiosamente o primeiro sinal de suas atividades artísticas só surge quase três anos depois, com a inclusão de trabalho de sua autoria na Exposição Geral de Belas Artes de 1859, inaugurada em março. Neste particular a lacuna pode ser explicada pelo fato de que a realização da mostra estava interrompida há sete anos, não obstante seja ainda singular que a pintura de Vinet então apresentada pertencesse a um colecionador particular e houvesse sido executada na França cerca de catorze anos antes (Vista da Normandia, coleção J. G. Le Gros, número 88 do catálogo).

Entre 1860 e 1865 realiza prolongadas incursões ao interior da então Província do Rio de Janeiro, escolhendo como objetivo de suas viagens uma região de clima e paisagem invejáveis. Permanece por diversas vezes em Santa Maria Madalena, então distrito do atual município de Cantagalo, dirigindo-se sem cessar a localidades vizinhas como São Sebastião do Alto, Taquaral, Córrego dos Indios, Ribeirão Vermelho e Porto Velho do Cunha. Percorre ainda as imediações de Cachoeiras e Nova Friburgo, atingindo São José do Barreto, perto de Macaé. As características geográficas de acesso e respectivas distâncias entre estas localidades e o Rio de Janeiro, avaliadas hoje, mais de cem anos após Vinet as ter palmilhado, servem como inquestionável confirmação do empenho do artista em procurar o assunto de seu paisagismo em consonância com a natureza agreste e de certo modo intocada pelas transformações das cidades em crescimento, para diante dela poder extrair a qualidade poética inerente ao motivo representado. Os trabalhos que produz nestes locais são notáveis, seguidamente apresentados às Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes até 1876, ano em que faleceu.

Do Rio de Janeiro já fixara diversos aspectos, a partir de 1860: Santa Teresa, Laranjeiras, Gragoatá (em Niterói), vistas tomadas do Largo da Carioca e do Morro do Castelo, a entrada da barra, Botafogo e Copacabana. Sua pintura foi, sem sombra de dúvida, verdadeira novidade para o ambiente cultural e artístico da época. Nada havia, no Brasil do início da década de 1860, que se assemelhasse sequer ao tipo de paisagismo praticado por Vinet. Os viajantes estrangeiros que por aqui estiveram desde os primeiros anos do oitocentos, artistas e naturalistas, caracterizaram suas obras pela explícita preocupação documentária, gerando frieza de interpretação e óbvio distanciamento cientificista. Johann Moritz Rugendas (1802-1858), algo romântico, pode ter sido exceção neste particular, como Friedrich Hagedorn (1814-1889) o seria pela rudeza simplória e expressiva da fatura. E todos eles, voluntariamente ou não, mantiveram bastante distância do universo de poder e das formulações estéticas da Missão Artística Francesa e da Academia das Belas Artes. Freqüentaram as exposições acadêmicas, quando o fizeram, como ato de curiosidade ou de gentileza cortesã, merecendo retribuição de igual teor. Paisagistas estrangeiros de passagem pelo Brasil interessaram-se tanto pela pompa formalista da Academia quanto esta se interessou pela orgulhosa independência que eles cultivavam, ou seja, em ambos os casos mera indiferença recíproca e a tolerância provocada pelos sentimentos próprios de superioridade e auto-suficiência.

INTEGRAÇÃO E RECONHECIMENTO

Já os brasileiros voltados para o paisagismo neste período, como Agostinho José da Mota (1824-1878) e, antes dele, August Müller (1815-circa 1883), tiveram de subordinar-se aos exíguos limites impostos pelos sucessores e epígonos da Missão, disso decorrendo inconstância da produção paisagística e uma total carência de espontaneidade em sua prática. A situação de Henri Nicolas Vinet foi, portanto, única. Não fez concessões em sua arte mas persistiu em integrar-se de algum modo ao ambiente cultural típico da metrópole na qual se radicara: curiosamente, este comportamento híbrido, cujas implicações parecem consignadas com clareza nos papéis desempenhados pelas partes, foi viável e produtivo. O artista, a quem atraía o magistério e que pelo menos desde 1866 ministrava aulas particulares em seu ateliê à rua da Quitanda número 26, jamais esboçou a tentativa inadimissível e polêmica, nos termos da hierarquia estética dominante, de integrar o corpo docente da Academia Imperial das Belas Artes; a instituição, por sua vez, não lhe negou acesso e premiação nas Exposições Gerais que promovia. Embora convicta e exclusivamente paisagista, Vinet foi admitido às exposições de 1860, 1862 (premiado com medalha de ouro), 1865 (agraciado com o hábito da Ordem da Rosa) a 1868, 1872, 1875 e 1876.

No ensino particular, associou-se durante curto período ao pintor alemão Emil Bauch (1823-circa 1890), também paisagista, em 1869. Suas atividades como professor terão obtido razoável sucesso, pois as manteria até 1875. Fez-se bastante conhecido no Rio de Janeiro, cultivando amplo círculo de amigos e admiradores, muitos dos quais comerciantes franceses ou de ascendência francesa aqui estabelecidos. Destes, o relojoeiro e ourives Pedro Simonard, proprietário de vários imóveis na cidade, foi o mais constante adquirente de suas pinturas. Deve-se observar que Vinet não enfrentou grandes dificuldades no horizonte profissional de sua arte, pois significativa parte de sua produção esteve desde logo incorporada às mais ilustres dentre as raríssimas coleções particulares à época existentes no Rio de Janeiro.

Sua carreira no Brasil foi, considerado o gênero de pintura que o interessava, no contexto cultural vigente, surpreendentemente bem sucedida. Não foi possível ainda precisar o alcance específico da influência que poderá ter exercido sobre seus contemporâneos ou sobre as gerações que o sucederam; contudo, é conclusiva a intrigante hipótese de relacioná-la, em caráter potencial, com a atuação de um paisagista da estatura de Johann Georg Grimm, situação que configura dois diferentes sistemas de autonomia e interação muito peculiares em nossa História da Arte.

PRODUÇÃO ARTÍSTICA

Não conhecemos, hoje, mais do que meia centena de pinturas de legítima autoria de Henri Nicolas Vinet, sendo que bem menos da metade delas incorporadas a coleções públicas oficiais. As coleções privadas apresentam o maior contingente, em alguns casos inacessível, da produção paisagística do artista. Mesmo supondo um expressivo fator de dispersão de seus trabalhos, pode-se admitir que durante as quase duas décadas em que permaneceu entre nós jamais chegou a ser um artista prolífico. Deslocando-se sempre em busca dos trechos de paisagem mais singulares e isolados, não temendo distâncias ou deficiências de transporte e habitação, é natural que a própria exigência de seus propósitos artísticos impusesse limitações quantitativas declaradas. Ademais, a dedicação continuada ao ensino criava atribuições inteiramente diversas, pressupondo organização e disponibilidade de horários. Sua obra européia, a julgar pela participação nas exposições do Salon em Paris entre 1841 e 1849, e pelos trabalhos deste período que hoje conhecemos no Brasil, foi bastante reduzida. O mesmo se pode dizer quanto à obra brasileira, neste caso em geral até mais ambiciosa em função dos formatos dos suportes e da composição de vistas panorâmicas. No conjunto, uma obra quantitativamente pouco expressiva se cotejada com os padrões que se tornariam comuns na segunda metade do século XIX.

Quando enfocamos, entretanto, sua vertente qualitativa, ficam nítidas a extrema homogeneidade e a relevante importância que possui. Efetivamente, até a década de 1880, não trabalhou no Brasil do oitocentos, permanentemente, um paisagista de obra tão notável quanto a de Henri Nicolas Vinet. Sob inúmeros aspectos foi um firme revolucionário em relação à estética hegemônica que encontrara no Rio de Janeiro, muito embora sem pretender suscitar antagonismo ou conflito com o statu quo. Mas como deixar de reconhecer o valor profundamente progressista e provocador de um paisagismo que se propunha a interpretar espaço e atmosfera como ato destinado a dar forma concreta à verdade da Natureza? Não mais a estéril e afetada atitude de visar uma intrínseca correspondência entre os objetos míticos e alegóricos de uma cena, sua composição e a respectiva maneira de tratá-la; não mais um mero simbolismo do mundo vegetal ou a contida e desambientada descrição botânica; não mais uma espécie de fórmula pronta para ser aplicada à Natureza, tornando-a palco para a epopéia ou para a incessante narrativa dos temas bíblicos e da antiguidade greco-romana: agora, em vez da paisagem imaginária, a paisagem do real e do cotidiano, na qual a idealização dos pastores arcádicos cede lugar às povoações de indivíduos caracterizados por seus papéis sociais e produtivos, fossem camponeses, senhores ou escravos, mas antes de tudo homens em sua vital relação com a única e principal protagonista das pinturas, a paisagem em sua poderosa simplicidade.

A obra de Henri Nicolas Vinet, sobretudo pela contingência de sua ocorrência em momento histórico e artístico muito singular em nossa evolução cultural, encerra valores superlativos. Demanda, é claro, um nível de abordagem e análise extensivo e sólido, capaz enfim de situar de modo consciente as questões essenciais que pode nos sugerir em seu significado e em sua estrutura formal. A despeito de não ter sido ainda atingido tal objetivo, o que esperamos possa se dar em breve, pode ser talvez oportuno indicar alguns parâmetros relativos à definição preliminar da questão, por intermédio da presente seqüência de anotações.

Outubro de 1988

 

Estudo preliminar publicado no jornal O PRELO, Suplemento de Cultura da Imprensa Oficial do Governo do Estado do Rio de Janeiro, ano 1, nº 2, outubro de 1988, p.12-13.



TEXTO:
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IMAGEM:
Henri Nicolas Vinet, Cascatinha da Tijuca, circa 1876, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

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