Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Fotografia de Italo Campofiorito, 1986

Homenagens

Quirino Campofiorito 1902-1993
CENTENÁRIO DE NASCIMENTO EM 2002

Não é obra do acaso o fato de Quirino Campofiorito ter percorrido, ao longo de sua vida, os mais diversos caminhos no universo da arte. A soma de tantas realizações não representa mera imposição de um destino comum, mas a autêntica tendência de sua própria natureza, da qual nos favorecemos todos, se compreendermos que o artista faz de sua experiência, uma vigorosa lição de vida, na qual destacam-se os valores éticos e humanos que fundamentam suas reflexões e definem sua atuação.

Na verdade, quem bem conhece a trajetória de Quirino Campofiorito, há de confirmar a tese de que sua vida confunde-se com a história da arte brasileira deste século, a despeito dos equívocos e injustiças que ela encerra, sobretudo se nos propusermos a abandonar os domínios da história oficial pouco escrita até hoje, e nos dispusermos a conhecer a versão que ainda não foi divulgada e analisada.

Frequentemente Quirino afirma ressentir-se do tempo que destinou a outras atividades — jornalista, caricaturista, professor, crítico de arte, entre outras — tempo esse roubado ao prazer e à vocação diante do cavalete e dos pincéis. Sou capaz de com ele me solidarizar no que diz respeito ao legítimo desejo de ter dedicado mais tempo à sua carreira artística, porém, não creio que pudesse ter sido diferente — um Quirino intimista, recolhido exclusivamente ao trabalho no ateliê — a fecunda e fascinante existência de quem desenvolveu com dedicação e honestidade, os ideais sobre os quais repousam sua fé no homem e em seu trabalho. Se com isso o pintor se sente prejudicado, eu diria que a arte brasileira, em especial o movimento pela consolidação da arte moderna no Brasil, em muito se beneficiou de sua participação ativa e corajosa e de seu espírito lutador. Sendo assim, meu caro amigo, a quem dedico sincera admiração, que a diferença de gerações só faz aproximar, lamento pelo seu ponto de vista, mas celebro, juntamente com a arte brasileira, a sua íntegra e inestimável contribuição para sua evolução.

Aluno de Modesto Brocos, Rodolfo Chambelland, João Batista da Costa e, por último, Augusto Bracet, na Escola Nacional de Belas Artes, desde então Quirino já reagia à estrutura conservadora de ensino imposta pela escola. Em 1929, conclui o curso, conquista o importante prêmio de viagem ao estrangeiro, estudando durante cinco anos na Europa — Paris e Roma — onde desfruta o vibrante ambiente artístico europeu, repleto de novas informações e experiências. Atendendo a compromisso firmado com a Escola Nacional de Belas Artes, envia trabalhos realizados nessa época, aqui recebidos com o espanto e a incompreensão característicos de uma mentalidade atrasada, que os julgou excessivamente "futuristas".

Em contraponto à estimulante experiência européia, enfrenta dificuldades naturais de adaptação ao ambiente retrógrado que encontra no Brasil, em meados da década de 1930, quando de seu retorno. Funda e dirige a Escola de Belas Artes de Araraquara, durante dois anos, assumindo, logo depois, a cátedra de Desenho Artístico da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Data deste período também a criação do jornal mensal Belas Artes, primeiro periódico brasileiro a tratar exclusivamente de arte, onde Quirino inicia sua atividade como crítico de arte, promovendo ampla divulgação de novas tendências artísticas, apoiando as jovens gerações de pintores e combatendo as posturas reacionárias predominantes.

Sua passagem pelo Núcleo Bernardelli — grupo de artistas de origem humilde, que se reuniam à noite nos porões da escola, para estudar e discutir pintura — reanimou as atividades um tanto dispersas, bem como contribuiu decisivamente para a vitória da renovação de métodos e mentalidades, consagrada com a criação da Divisão Moderna na estrutura do Salão Nacional de Belas Artes. Paralelamente, imprime caráter modernizador e profissionalizante aos cursos da Escola Nacional de Belas Artes, através de persistente desempenho combativo contra as idéias anti-evolucionistas.

Na pintura, consolida-se o exímio pintor de figuras humanas, com apurado desenho, textura própria e volumes sensualmente delineados. Tais características indicam o futuro interesse do artista pela pintura muralista, presente em significativa parcela de sua obra, mas pouco realizada, em virtude de circunstâncias adversas.

Além dos assuntos brasileiros — temas sociais, cotidiano do trabalhador — que tão bem soube interpretar, Quirino Campofiorito realizou uma série de trabalhos, por ele denominada de "reminiscências", onde referências do passado clássico e de seu conhecimento erudito — fragmentos de estátuas ou monumentos — conjugam-se harmoniosamente a elementos vivos da natureza - flores, vegetação, caramujos - sugerindo uma associação dialética do tempo como fórmula de reflexão para soluções mais justas e profícuas. As naturezas-mortas, ou "silenciosas", como prefere chamá-las, resultam de serena e espontânea integração do artista com os elementos naturais e seus fenômenos, e revelam o domínio técnico de composição e o sólido desenho que fazem deste tema, fonte de trabalho tão inesgotável quanto sua lúcida existência.

A despeito da firme aversão que sempre manteve a respeito do abstracionismo como tendência artística, Quirino Campofiorito realizou uma série de experiências a partir de homenagens aos artistas que preconizaram este gênero, revelando o seu permanente interesse pela essência da pintura em sua expressão mais pura, em sua forma mais simplificada, representada pelo quadrado, símbolo universal desse conceito.

Cézanne, Van Gogh e, em especial, Matisse, foram os mestres modernos que mais o impressionaram, os quais homenageou com diversas telas. Sobre uma afirmação deste último, publicada em matéria de jornal datada de 1983, afirmando que "...a pintura deve comover e encantar os olhos, deve provocar, no espectador, uma emoção tranquila e quieta, uma sensação agradável, semelhante a quem, sentado numa poltrona, contempla uma bela paisagem", encontramos uma significativa anotação de Quirino Campofiorito, feita à mão, na margem da página: "eu também julgo assim, a pintura". Creio que melhor do que qualquer apreciação crítica sobre o pintor, esta frase resume, em sua simplicidade, os valores que geraram e definiram sua concepção de arte.

Maria Elizabete Santos Peixoto
Extraído do catálogo da exposição retrospectiva realizada no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1992.



TEXTO
Copyright © Maria Elizabete Santos Peixoto, 1992-2023

BIBLIOGRAFIA

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AUTOR DE
História da Pintura Brasileira no século XIX, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1983, 292p.

NA INTERNET
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